Um engenheiro da Samarco Mineração, uma das maiores exportadoras brasileiras de minério de ferro, foi despachado, em meados de 1999, para uma pequena cidade no oeste da Índia. Ali fica a mina de um dos fornecedores de bentonita, uma matéria-prima usada no processo de fabricação do aço. Sua missão era preparar o embarque de 11.000 toneladas do insumo comprado pela Samarco. Sucede que o negócio gorou já na primeira visita do brasileiro à mina. Ele teve uma visão assustadora do local: mineiros manuseavam ácidos perigosos sem nenhuma proteção. A pele de seus antebraços estava despigmentada, como se acometidos de vitiligo. "As condições de trabalho eram inaceitáveis", diz Luciano Penido, presidente da Samarco.
Desde então, a companhia nunca mais negociou com a empresa indiana. Essa decisão teve um efeito positivo: recentemente, a Mitsubishi, trading da empresa indiana, procurou a Samarco para mostrar que normas de segurança haviam sido tomadas.
A maneira transparente com que a Samarco lidou com um fornecedor sem o mínimo senso de seus deveres com os funcionários é ilustrativa de um conjunto de práticas éticas que, nos últimos tempos, vêm ganhando a força um movimento no mundo dos negócios. "Uma empresa responsável cria valor para os seus acionistas ao demonstrar respeito pelos princípios éticos, pelas pessoas, pelas comunidades e pelo ambiente", diz Robert Dunn, presidente da Business for Social Responsability. Também conhecida pela sigla BSR, a entidade reúne 1.400 empresas americanas que assumem ter compromissos sociais. A maioria é de multinacionais do porte da Ford, Johnson & Johnson e AT&T. Juntas, as associadas da BSR somam um faturamento anual acima de 1 trilhão de dólares.
Nos Estados Unidos, doar fundos para a comunidade e patrocinar museus e escolas não é exatamente uma novidade entre as dinastias endinheiradas. O conceito da responsabilidade social vai além da mera filantropia. Passou a ser considerado, no mundo corporativo, como um daqueles investimentos estratégicos tão importantes quanto os aplicados para garantir produtos de qualidade. É o que os americanos já batizaram destrategic giving, ou doação estratégica. Nessa versão um pouco mais calculista, o altruísmo e as boas relações com os funcionários e com as comunidade servem como uma vantagem competitiva. À medida que um número crescente de empresas engrossa essa onda, o que resulta é um efeito dominó.
Veja a Samarco: de um lado, repeliu um fornecedor relapso, arcando com o custo de buscar outra fonte de matéria-prima. De outro, Penido, o presidente, acredita que, por adotar uma postura ética, a mineradora vem encontrando cada vez mais portas abertas. Tempos atrás, a Samarco precisava de dinheiro para adquirir equipamentos de controle ambiental e construir uma hidrelétrica. A compra foi financiada com recursos do International Financial Corporation (IFC), braço financeiro do Banco Mundial. No ano passado, a ação social da Samarco foi um dos temas discutidos em um seminário promovido pelo IFC no Rio de Janeiro.
VANTAGENS
Há no Brasil cada vez mais empresas que, a exemplo da Samarco, descobrem os benefícios de ser socialmente responsável. Basta ver uma pesquisa conduzida em 1999 pelo Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife). Mais da metade das 273 companhias que responderam ao questionário afirmaram apoiar algum tipo de atividade de cunho social ou comunitário, principalmente programas educacionais que beneficiam crianças e adolescentes.
É interessante observar que as empresas que estão aderindo ao movimento não vêem os valores sociais como um fim em si mesmo. Os princípios da responsabilidade social vêm sendo integrados à gestão estratégica, em vez de tratados como um apêndice. "As empresas responsáveis já experimentaram uma vasta gama de benefícios", diz Dunn. Prova disso é um estudo recente feito pela Universidade Harvard. O levantamento conclui que existe uma relação direta entre comportamento ético e desempenho financeiro. Uma corporação responsável apresenta uma taxa de crescimento que chega a ser quatro vezes superior à da que presta contas apenas aos acionistas.
Uma das vantagens a que Dunn, da BSR, se refere é o acesso mais fácil ao capital. Segundo o Social Investiment Forum, mais de 1 trilhão de dólares de ações são administradas por fundos que só aplicam em empresas com uma gestão comprometida com princípios éticos.
Na bolsa de valores de Nova York, um índice criado pela Dow Jones está monitorando a movimentação das ações de um grupo de 200 empresas que adotam práticas de responsabilidade social e fazem parte de uma lista de 3.000 companhias mundiais. Segundo o desempenho avaliado entre janeiro de 1994 e novembro de 1999, as empresas éticas tiveram uma valorização de 170.6%, bem superior à média de 112,2% obtida pelas 3.000 empresas. Num mercado globalizado como o de hoje, adotar ou não práticas responsáveis pode fazer a diferença entre ganhar ou deixar de embolsar alguns milhões de dólares.
"Se o investidor puder optar entre duas empresas com a mesma rentabilidade, qual você acha que vai ser a escolhida?", pergunta Valdemar Pereira Neto, superintendente do Instituto Ethos de Responsabilidade Social, a entidade espelho da BSR, no Brasil. Fundado em 1998, o Ethos reúne 214 empresas brasileiras, que empregam 470000 funcionários. Seu faturamento anual eqüivale a 14% do PIB brasileiro.
Outra vantagem decorrente do comportamento ético diz respeito à imagem. Em 1992, a Acesita, única fabricante de aços especiais inoxidáveis na América do Sul, foi privatizada e teve seu quadro reduzido de 7.800 para 3.200 funcionários. É fácil deduzir o impacto negativo causado pelo desemprego entre os 70.000 habitantes de Timóteo (MG), onde fica o parque industrial da empresa. "Ninguém passa por isso impunemente", diz João Manoel de Carvalho Neto, diretor administrativo e de recursos humanos da Acesita. Na tentativa de amenizar esse choque, a companhia passou a patrocinar programas comunitários. Em 1995, montou um centro cultural e criou a sua fundação. Hoje, é responsável por levar a Timóteo e a outros quinze municípios espetáculos nacionais e internacionais, além de promover talentos regionais. A fundação também atua nas áreas de educação, comunitária e de meio ambiente. "Esse trabalho melhorou nossas relações com a prefeitura, com a Associação Comercial, enfim, com toda a cidade", afirma João Manoel.
É preciso, porém, ser cauteloso. Quando uma corporação assume publicamente um compromisso com a sociedade, sua palavra passa a ser cobrada a todo momento. Um movimento em falso pode ser suficiente para cair do pedestal. E pode ser difícil voltar a subir. Que o digam impérios como a Nike, acusada de negociar com fornecedores asiáticos que utilizam o trabalho infantil. A fabricante de produtos esportivos viu, em 1995, a cotação de suas ações despencar quase 50%. Segundo a University of Southwestern Louisiana, a má publicidade pode mesmo diminuir o valor das ações durante um período mínimo de seis meses. Com o avanço da Internet, o risco aumenta. As boas notícias e as escorregadelas das empresas chegam velozmente à opinião pública . É o efeito holofote.
É claro que a imagem institucional é importante, mas não é tudo. O preço e a qualidade continuam decisivos na compra. A consultoria americana Walker Research descobriu que, quando esses fatores são idênticos, 76% dos consumidores trocariam a marca se uma das empresas estivesse relacionada com uma boa causa.
RESPEITO AO CONSUMIDOR
Agenda da responsabilidade social não se esgota nas questões sociais ou nas relações com os consumidores. Zelar pelo meio ambiente também se tornou uma prioridade emergente. Considere o caso da Plantar. Em 1998, a empresa mineira, que produz carvão vegetal de eucalipto, conquistou o direito de usar o selo verde do Conselho de Manejo Florestal. Criado pelo Forest Stewardship Council (FSC), uma organização internacional independente que incentiva o manejo correto de florestas, o selo fez a Plantar aumentar as exportações para empresas européias que dão preferência a produtos ambientalmente apropriados, socialmente benéficos e economicamente viáveis.
A partir de 2001, o Buyer’s Group britânico (associação de cerca de 300 empresas, entre elas a cadeia inglesa de supermercados Sansburry ) passará a adquirir somente produtos que estampam selos verdes nas embalagens. A Plantar, que vai exportar, neste ano, 8.000 toneladas de carvão vegetal, projeta aumentar suas vendas para 13.000 toneladas na esteira desse movimento. "A partir de 2001, a demanda vai aumentar muito e empresas certificadas, como a Plantar, vão vender mais’, diz Roberto Smeraldi, da ONG Amigos da Terra, responsável pela implantação de um Buyer’s Group, semelhante ao já existente na Inglaterra, no Brasil.
Os selos verdes não são os únicos que facilitam o trânsito de produtos brasileiros no exterior. O selo do Programa Empresa Amiga da Criança, da Fundação Abrinq, é uma espécie de alvará para empresas que não empregam mão-de-obra infantil. Traduzido para o inglês e o espanhol, o selo colabora com as vendas de produtos brasileiros nos países com uma legislação social avançada.
Não apenas os clientes tendem a ser mais leais às empresas responsáveis. Nas empresas em que os funcionários são bem tratados, há ganhos de produtividade e qualidade. Uma pesquisa feita pelo Medstar Group e pelo American Produtivity e Quality Center revelou que programas de saúde, por exemplo, podem aumentar a produtividade e diminuir em 30% o custo relativo a faltas, rotatividade e baixas médicas.
Se para algumas empresas os resultados aparecem no longo prazo, outras se vêem compelidas a apostar no credo da responsabilidade social movidas pelo pragmatismo. Para a Plastipar, fabricante paranaense de acessórios e ferragens, investir na educação dos funcionários não foi propriamente uma opção. Em 1996, a empresa foi incorporada ao grupo alemão Hettich, que trouxe para o Brasil uma avalanche de novas tecnologias. "Como aumentar a produtividade com novos equipamentos e processos se 40% de nosso pessoal não tinha o primeiro grau?", indaga Daniel Winocur, direto geral da Hettich Plastipar. Nos últimos três anos, 120 funcionários concluíram o ensino fundamental ou médio depois de freqüentar aulas em salas construídas pela empresa. "É claro que isso é bonito, mas estamos falando de negócios", diz Winocur. "Agimos assim para garantir o êxito do processo de mudança".
Tão importante quanto formar bons funcionários é atrair e reter novos talentos. Não faltam exemplos de empresas que conseguem sair na frente nesse quesito. A C&A, uma rede de lojas de departamentos espalhadas pelo país, ajuda a educar dezenas de milhares de crianças brasileiras por meio de seu instituto. Funcionários são incentivados a trabalhar como voluntários e, para isso, são liberados do expediente uma vez por semana. Depois que a ação social da C&A foi tema de uma reportagem de capa da EXAME, em abril de 1998, o departamento de recursos humanos da empresa viu dobrar o número de candidatos à vaga de trainess.
CUIDADOS
Outra forma de aplicar as lições da responsabilidade social dentro de casa é promover a diversidade no local de trabalho. A regra básica é não discriminar funcionários por raça, sexo, idade ou religião. O grupo Pão de Açúcar deu um passo adiante: implantou uma iniciativa inédita no setor de supermercados. Passou a recrutar idosos aposentados como empacotadores. A experiência, iniciada há dois anos numa loja do bairro paulistano de Pinheiros, revelou-se vantajosa para a empresa. Os novos funcionários tendem a ser mais atenciosos com os clientes e cuidadosos com as compras. Hoje o Pão de Açúcar emprega mais de 800 pessoas na faixa superior a 60 anos em suas lojas.
Outro caso em que a ação social também resultou em experiências positivas para dentro dos muros da empresa é o do Grupo Orsa, quarto maior produtor de papelão ondulado do país. Seus programas, que priorizam educação e saúde, atendem anualmente cerca de 40.000 crianças e adolescentes por meio da Fundação Orsa. O empresário Sérgio Amoroso, fundador da empresa, trata a filantropia como um foco de negócio. A instituição que se candidata a receber subsídios da fundação deve apresentar um projeto detalhado. Amoroso faz exigências empresariais: ingerência na gestão, discussão dos métodos, avaliações periódicas e, o mais importante, busca de resultados. "As instituições devem ter bons administradores e uma gestão competente para ar certo", diz Amoroso. Ele destina pelo menos 1% do seu faturamento anual à fundação. Em 1999, a receita do grupo foi de 300 milhões de reais.
Qual a vantagem para a Orsa? Segundo Amoroso, ao incentivar o trabalho voluntário de funcionários, o empresário diz que identifica mais facilmente líderes entre os colaboradores. Como trabalham em um campo com muitas possibilidades de ação e pouco dinheiro, os funcionários aprendem a potencializar os recursos. O trabalho em equipe sai fortalecido. Com a experiência acumulada no voluntariado, foram criados núcleos de trabalho que trocam figurinhas sobre como reduzir custos e aumentar resultados. "A geração de caixa será uma conseqüência", diz Amoroso.
A responsabilidade social nem sempre é sinônimo de sucesso. Pode, se não for enfocada como estratégia empresarial, até trazer prejuízos. A prova disso foi estampada numa reportagem de capa da revista americana Fortune, em abril de 1999. o assunto em pauta era Levi’s e como ela "havia jogado no lixo uma das grandes marcas da América". A notícia chocou os expoentes do movimento da responsabilidade social. Afinal, a gigante dos jeans era vista como um emblema dessa corrente.
Robert Haas, o presidente da Levi’s, tinha um plano: mostrar que uma empresa fiel aos valores sociais poderia ter um desempenho financeiro melhor do que aquela que apenas ambiciona o lucro. Mas Haas cumpriu apenas parte do prometido. A Levi’s realmente passou a ter uma administração participativa. Mas e o melhor desempenho financeiro? Desde 1997, a empresa fechou 29 fábricas nos Estados Unidos e eliminou 16.310 postos de trabalho.
"A Levi’s Strauss é uma experiência fracassada de uma gestão utópica", escreveu a Fortune. Haas acreditava que na sua empresa a voz de um operário deveria Ter tanta oportunidade de ser ouvida quanto a do CEO. Em 1987, Haas criou o Levi Strauss Mission and Aspirations Statement, um documento que promovia religiosamente os mais nobres valores – trabalho em equipe, confiança, diversidade e empowerment, reforçados por cursos de treinamento e um novo plano de benefícios aos funcionários. Essas iniciativas, porém, não se refletiam positivamente no negócio. No processo decisório, por exemplo, a menos que todos concordassem, nem mesmo o presidente tinha autoridade para levar uma decisão para a frente. E, como se sabe, inércia, na vida corporativa, é sinônimo de estagnação.
De costas para o mercado, a Levi’s esqueceu que o seu negócio não era a caridade. Com isso, deixou passar valiosas oportunidades. Mas recentemente, a Levi Strauss sofreu uma reestruturação. Voltou a se preocupar propriamente com a administração dos negócios e de sua marca.
O episódio da Levi’s mostra como é delicado manter o equilíbrio entre gerenciar um negócio lucrativo e ser socialmente responsável. Segundo Robert Dunn, da BSR, no futuro o comportamento ético vai deixar de ser uma opção. "Agir de forma socialmente responsável não vai ser mais um diferencial", diz Pereira Neto, do Instituto Ethos. "Quem quiser se manter no mercado vai ter de se mexer." Num cenário provável em que consumidores, ao escolher um detergente, penderão para a marca da fabricante que se aplicou em respeito à natureza e aos funcionários, não haverá espaços para amadorismos ou negligências. "Historicamente as sociedades ocidentais tendem a ceder mais direitos do que responsabilidades às empresas", afirma Deborah Leipziger, autora de Corporate Citizenship. Isso está mudando. "No passado, nenhuma sociedade teve tantos centros de poder como a de hoje", afirma Peter Drucker. O guru da administração moderna deixa uma questão pertinente em aberto: "Quem é que vai tomar conta do bem comum?" É bem provável que a resposta esteja no papel social cada vez mais decisivo das empresas.
O QUE FAZ UMA EMPRESA ÉTICA
Como uma empresa socialmente responsável deve se relacionar com seus diferentes públicos.
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Originalmente publicado no órgão laboratorial do Curso Abril de Jornalismo em Revista, revista PLUG 2000, v. 17, p. 36-41, [julho] 2000.
Postado por Cindy Dias
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